Eu era jovem, com minhas economias comprei um carro que se tornou minha paixão pelo resto da vida.
Aventura! Ah... Sair de carro naquela época era um sonho.
Alegre, parti sem destino e pus-me a rodar; janelas abertas, vento no rosto e no coração a alegria incontida da juventude. Passei por várias cidades e por último, por uma chamada Conchas.
O ronco do motor, “majestoso”; embevecido, segui absorto em minhas fantasias.
Alguns quilômetros além vi uma estradinha linda, chão de terra, com árvores em ambos os lados, suas copas se uniam formando como que um túnel; era outono, as folhas caídas no chão formavam um tapete tão lindo que só a natureza pode proporcionar.
Entrei por ela, devagar, olhando sua extraordinária beleza; assim, distraído não me dei conta do tempo que passara rapidamente, havia, porém, algo de encantador naquele lugar e que inexplicavelmente me envolvia.
Começava a escurecer e agora preocupado procurava um lugar para manobrar e voltar, mas não encontrava, a estadinha era muito estreita.
Finalmente avistei um lugar que parecia apropriado.
Anoiteceu, faróis acesos, parei o carro para voltar.
O motor “majestoso” parou de funcionar!
Ligava, desligava, ligava, desligava; repeti por várias vezes e... Nada!
Que situação, meu Deus, e agora, neste fim de mundo o que vou fazer?
Que Deus me ajude; fechei o carro e pus-me a pé pela estradinha em busca de socorro até que avistei uma pequenina casa de taipa que a lua iluminava, e que pelas frestas das suas pobres paredes vazavam a tênue luz de lampiões.
Bati na porta.
- Quem é? – perguntou uma voz desconfiada, sem abrí-la.
- Meu nome é Matias, meu carro quebrou aqui perto, está lá na estradinha, pode me ajudar?
Com um rangido característico a porta lentamente se abriu.
- Boa noite – disse o dono daquela voz – “chegue”.
Entrei e contei-lhe meu problema; estava nervoso, longe de casa, lugar estranho, pessoas estranhas...
Prontamente o “seu” Antonio – esse era seu nome – esse era seu nome – e seus filhos munidos de lampiões e algumas ferramentas foram até onde estava meu carro.
Sinceramente, não acreditava que pudessem fazer algo, mas pelo menos já não estava só naquele lugar desconhecido e distante.
- O que tem o carro? – perguntou.
- Não dá a partida – respondi dando-lhe a chave.
Ele entrou, sentou-se ao volante e, com a chave no contacto deu a partida:
Roooooom... Roooooom... Rooooooomm, para meu espanto o motor funcionou de imediato, sem que tivessem feito qualquer coisa, impressionante!
O que teria havido? Hoje, quase cinqüenta anos
Passados sei o porque.
Motor funcionando, levei-os de volta para sua casinha.
Lá chegando disse-me “seu” Antonio:
- Matias, estou com sério problema e necessito de sua ajuda, não tenho à quem recorrer nesta hora, minha filha está doente e não tenho como levá-la ao hospital em Conchas, acho que foi Deus que o enviou.
Entramos. Com um lampião clareou um pequeno jirau que servia de cama à pobre menina.
Enquanto sua mãe limpava seus pesinhos com um pano úmido, a luz débil do lampião transformava aquela cena em imagens fantasmagóricas nas paredes de barro e cipós da humilde casinha.
Para levá-la ao carro peguei-a nos braços com ternura, e ela passou seus bracinhos pelo meu pescoço encostando seu rostinho no meu – ardia em febre.
Uma compaixão infinita invadiu-me naquele momento, beijei-lhe a fronte delicadamente, coloquei-a no carro, ajeitei seu vestidinho de chita que ficara em desalinho e partimos.
Pouco antes de entrarmos na estrada principal, “seu” Antonio disse-me:
- Veja aquelas três árvores – apontando-as – elas estão há um quilometro da minha casa, e o sítio chama-se São José.
Sob o luar as paineiras destacavam-se imponentes!
O tempo, misterioso, passou como o vento...
Fui trabalhar em São Paulo e deixei na minha pequenina cidade natal minhas recordações, meus amigos e minha juventude.
Muitos anos se passaram desde aquela viagem pelos lados de Conchas, até que um dia resolvi rodar a esmo e, sem destino, o carro me levava, levava...
Percebi então que estava indo em direção àquela estradinha colorida, “encantada”...
As recordações vieram fortes, vivas em minha mente como se tudo tivesse sido ontem.
Não estava longe e segui em frente; como estariam todos, e a menina que deixei no hospital naquele ano longínquo?
Quanto tempo passara, 17, 18 anos?
Subitamente avistei três árvores quase juntas, e recordei-me do “seu” Antonio, eram as três paineiras! Seus galhos balançando ao vento pareciam que me saudavam, e a estradinha aos seus pés convidando-me à entrar.
Entrei por ela, não sei porque meu coração bateu forte quando ao longe avistei a casinha que em nada ou quase nada mudara, e que eu só vira com a luz da Lua;
Estacionei o mesmo carro, no mesmo lugar que havia estado há tanto tempo; foi quando sorridente surgiu à janela de madeira rústica uma linda morena de dentes alvos e olhos brilhantes.
-Mãe, tem gente – chamou-a sem sair da janela.
-Meu Deus, é o "seu" Matias! – disse Dona Maria, sua mãe, lembrando-se de mim e do carro.
Dona Maria ficou emocionada com minha visita e a mocinha linda da janela ficou o tempo todo ao meu lado enquanto conversávamos.
Chamava-se Ângela, era a "menina febril".
O "seu" Antonio falecera, os filhos, cada uma tomara um destino na vida...
Apaixonei-me, ou melhor, nos apaixonamos assim que no vimos embora houvesse diferença de idade entre nós. Com aquela "flor" ao meu lado nem percebi que as horas tinham passado e eu, para ficar mais tempo perto da linda moça também contava partes da minha vida.
Assim, conversamos por horas e horas relembrando o passado, passagens alegres e tristes num constante alternar de risos com incontidas lágrimas enquanto ouvíamos os estalos espaçados da lenha queimando lentamente no velho fogão e sob a luz grácil do lampião vislumbrávamos olhares perdidos em pensamentos, uns dos outros.
Lá fora uma coruja cantava anunciando a noite; as horas "voaram".
Percebi minha indelicadeza pelo avançado da hora e levantei-me para despedir-me.
-"Seu" Matias, fica aqui esta noite, a estrada não está boa, vou arrumar uma cama com colchão de palha de milho, bem macio, no quarto dos filhos, o senhor vai gostar – convidou Dona Maria.
Aceitei – aquele convite "caiu do céu".
Casa pobre, paredes de barro, quarto sem portas, modestíssimos e "ela" ali, dormindo no quartinho ao lado, tão perto e tão "distante"...
Sob a luz difusa do lampião e das brasas vermelhas do fogão, sentindo o suave aroma e os estalos da lenha queimando lentamente, os sons foram diminuindo, diminuindo, ficando cada vez mais distantes até que adormeci, adormeci profundamente!
Não se consegue esconder quando se ama de verdade, principalmente de uma mulher, assim, fui convidado a voltar tão logo pudesse.
Casamo-nos e tivemos três filhos, que se tornaram lindos moços que casaram e tiveram filhos que são meus netos.
Hoje aos 66 anos moro numa casa modesta que construí bem ao lado daquela casinha de taipa que tantas recordações me trazem...
Quantas lembranças!
Vejo através da janela o meu querido carrinho, sim, aquele mesmo carrinho que me deixou num “sufoco” naquele distante dia, que traçou meu destino e tantas felicidades me deu.
Adoeci terrivelmente, sinto-me cansado...
Meu Deus, as lembranças são tantas que meus olhos se enchem de lágrimas; é difícil escrever em poucas páginas tantas coisas que a vida me proporcionou.
Acho que é o clima, está amanhecendo, mas ainda está escuro, é muito silêncio aqui no sítio São José; as lembranças vêm com intensidade, quase "vejo" o passado.
Há um nevoeiro esbranquiçado no ar, na mata, ele se move lentamente, parece ter vida, formam-se imagens, fisionomias disformes que parecem sorrir zombeteiras não sei de que, talvez da minha mente já cansada, exaurida, das coisas guardadas no recôndito da minha mente.
Estou terminando de escrever, e daqui da mesinha onde escrevo, olho mais uma vez através da janela e vejo meu carro, velhinho como eu, seus faróis mesmo apagados parecem dois olhinhos à fitar-me, parece que, como o nevoeiro, lê meus pensamentos, parece que, como eu, se conforma também com sua sorte, parece que aguarda silenciosamente para levar-me à um lugar de onde não voltarei...
Meu querido amigo, deste-me apenas um "sufoco" em tantos anos, um feliz "sufoco" que decidiu minha vida e selou meu destino naquela noite distante.
Aguarda carrinho querido, aguarda, não se apresse.
Conchas/SP
Matias José Schneider